Por Anatoli Oliynik
Para alguns a leitura da Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino (1225-1274), um dos trinta e três doutores da Igreja, torna-se densa e incompreensível. Densa, de fato ela é, exige certo esforço para sua compreensão porque não se trata de leitura elementar ou de diversão, mas de leitura analítica de um dos maiores tratados já escritos por mãos humanas.
Acredito que uma das dificuldades para o leitor desta obra seja a não compreensão da estrutura do método aplicado por Santo Tomás nesta obra. O que pretendo neste despretensioso artigo é puxar uma ponta do véu que encobre o palco, na expectativa que o descortino seja útil e ajude o leitor interessado no assunto. Para isso, escolhi aleatoriamente um assunto constante na obra magna de Santo Tomás onde faço breves comentários de esclarecimento relativos ao método. Vamos e eles.
A PIEDADE[i]
Questão 101
em quatro artigos
“Depois da religião, deve-se considerar a piedade. Este estudo nos mostrará com clareza os vícios que lhe são opostos.
Sobre a piedade quatro questões:
1. A quem se estende a piedade?
2. O que a piedade assegura a alguns?
3. A piedade é uma virtude especial?
4. Será lícito invocar a religião para omitir os deveres da piedade?”
Nesta transcrição vou considerar tão somente a primeira questão “A quem se estende a piedade”. Dois são os objetivos a serem alcançados:
O primeiro, demonstrar o Método Dialético de Aristóteles (método da confrontação dos contrários) utilizado por Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica de onde extraí o tema “Piedade”.
O segundo, é levar ao conhecimento daqueles que nunca leram a Suma Teológica o quão importante é estudar Santo Tomás de Aquino, o maior filósofo escolástico ao lado de Duns Scot, embora ambos atuassem em campos diferentes.
No Método Dialético a questão é colocada como uma pergunta (dilema, problema), em seguida são enunciadas varias respostas conhecidas e concebidas mais algumas possíveis; na sequência arbitradas dialeticamente e por fim a conclusão das respostas e das objeções. Esta é, ainda hoje, a estrutura da investigação científica.
Continuemos, pois, à transcrição do texto de Santo Tomás.
Artigo 1
A piedade se estende a algumas pessoas determinadas?
“Quanto ao primeiro artigo, assim se procede: parece que a piedade não se estende a certas pessoas determinadas.”
Observe-se que Santo Tomás faz o enunciado com uma negação. Nem sempre é assim. Aleatoriamente ele pode começar com uma negação, como neste caso, ou como uma afirmação.
A seguir, Santo Tomás apresenta três respostas conhecidas:
1. Com efeito, Agostinho diz: “Por piedade se costuma entender, no sentido próprio, o culto de Deus que os Gregos chamam de eusebéia.” Ora, o culto de Deus não se refere à relação com os homens, mas exclusivamente à relação com Deus. Logo, a piedade não se estende de maneira determinada a nenhum tipo de pessoa humana.
2. Além disso, Gregório diz: “A piedade oferece seu banquete no seu dia, porque ela enche as entranhas do coração com obras de misericórdia”. Ora, segundo Agostinho, as obras de misericórdia devem ser prestadas a todos. Logo, a piedade não se estende a certas pessoas determinadas.
3. Ademais, no trato com os homens existem inúmeros outros tipos de relação, afora a consangüinidade e a concidadania, como o mostra o Filósofo[1]. Cada um desses tipos de relação fundamenta certa amizade que parece ser a virtude da piedade, como diz a Glosa sobre texto de Paulo: “tendo as aparências de piedade...”. Logo, a piedade não se estende apenas aos nossos parentes e concidadãos”.
Agora Santo Tomás apresenta uma objeção:
Em sentido contrário, Túlio declara: “A piedade é a virtude pela qual se presta um obsequioso respeito aos consanguíneos e amigos da pátria”.
Enfim, a conclusão:
Respondo: O homem se torna devedor de outras pessoas, de diferentes maneiras, segundo os diferentes graus de excelência que estas pessoas possuem e segundo os diferentes benefícios que delas tiver recebido. Em ambos os planos, Deus ocupa o primeiríssimo lugar, pelo fato de ser o mais excelente, e de, ser para nós o primeiro princípio de existir e de governo. Mas nossos pais e nossa pátria, dos quais recebemos vida e subsistência, merecem também, embora de modo secundário, este título de princípio de existir e de governo. É por isto que depois de Deus, o homem é o máximo devedor dos pais e da pátria. Conseqüentemente, assim como cabe à religião prestar culto a Deus, assim também, em grau inferior, pertence à piedade render culto aos pais e à pátria. Por outro lado, no culto dos pais se inclui o culto a todos os consanguíneos que são chamados porque procedem dos mesmos pais, como o demonstra o Filósofo. E no culto à pátria está incluído o culto a todos os concidadãos e a todos os amigos da pátria. É por isso que a piedade se estende a todos estes de maneira prioritária. (grifo meu)
Quanto ao 1º, portanto, deve-se dizer que o mais inclui o menos. Por essa razão, o culto devido a Deus inclui em si mesmo, como algo particular, o culto que se deve aos pais. Daí esta palavra que se encontram em Malaquias: “Se eu sou Pai, onde [está] a honra que me é devida?” Por conseguinte o termo piedade pode se referir também ao culto divino. (grifos meu)
Quanto ao 2º, deve-se dizer que, como diz Agostinho: “A palavra piedade é empregada pelo povo também para designar as obras de misericórdia. A meu ver, esse sentido provém do fato que Deus recomenda estas obras de um modo todo especial, chegando até a declarar que elas lhe são mais agradáveis que os sacrifícios. Este costume nos levou a dar ao próprio Deus o nome de piedoso”.
Quanto ao 3º, deve-se dizer que as relações de consangüinidade e de concidadania mais se referem aos princípios de nosso existir mais do que outro tipo de relacionamento. Por isso a elas mais se estende o nome de piedade.
Espero que estas informações possam ajudar o leitor a compreender o método aristotélico e, ao mesmo tempo se interessar pela obra caso dela não tenha conhecimento.
FONTE:
Fonte: Suma Teológica – Volume VI, II-II Parte - Questões 57-112, págs. 529-31.
[i] A piedade se apresenta como a primeira das virtudes sociais, que formam com a religião a constelação de virtudes anexas da justiça. O estudo da religião se abria à consideração dessa forma superior de justiça que presta a Deus a homenagem do culto divino, prolongando-se na orientação de toda a existência humana através das disposições de adoração, de dependência e de reconhecimento em relação ao Criador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário