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terça-feira, 25 de outubro de 2016

“NINGUÉM É DONO DA VERDADE”, por Olavo de Carvalho

Scripts culturais brasileiros:

1 - “NINGUÉM É DONO DA VERDADE”

 É claro que é. Qualquer um que apreenda uma verdade incorpora-a aos seus conteúdos de consciência, fazendo dela, automaticamente, uma parte integrante do seu patrimônio cognitivo e, se lhe dar um valor elevado e constante, um fundamento vital da sua personalidade inteira. Dispõe dela como um dado de memória, pode recobrá-la a qualquer instante, usá-la como premissa de raciocínios, explicar algum fato, sustentar alguma opinião, tomar decisões, avaliar outras verdades etc. etc.

 Uma verdade aprendida é, em toda a força da palavra, uma propriedade.  Se não for uma propriedade, então não foi aprendida nem muito menos incorporada, foi apenas uma frase ouvida ou um pensamento solto desligado de toda avaliação de veracidade ou falsidade.

 Todo mundo é proprietário das verdades que conhece.

 É certo que a frase “Ninguém é dono da verdade” é usada, em geral, no sentido de que “ninguém conhece a verdade final sobre todas as coisas”, mas nesse caso ela só serve para contestar alguma afirmação que pretenda dizer a verdade final sobre todas as coisas. Só que, como uma afirmação desse tipo é materialmente impossível de formular (a totalidade não pode ter nenhum predicado que já não esteja contido nela, e tudo o que dela se predique será tautológico ou vazio), ela jamais foi formulada nem o será, donde se conclui que alegar contra ela que “ninguém é dono da verdade” é não dizer absolutamente nada, é somente arrotar palavras em vão.

 A aparente obviedade da frase, que produz quase sempre uma concordância automática, advém precisamente de que ela não passa de um “flatus vocis”. Tanto aquele que a profere quanto aquele que concorda admitem, com isso, que não têm a menor idéia do que estão dizendo, pois, se tivessem, saberiam que não estão dizendo nada.

 Talvez uma vaga consciência disso passe no fundo obscuro dos usuários da frase, que por isso a empregam de modo mais restrito, para contestar a mera pretensão de conhecer com certeza qualquer verdade em particular.

Por exemplo, você diz: “Uma eleição com votos apurados em segredo é fraude.” Essa afirmativa não deveria ser objeto de discussão, já que a transparência na apuração dos votos é uma condição que faz parte da própria definição de “eleições”. Nada resta ao ouvinte indignado senão apontar, por trás dessa modesta verdade, a pretensão divina de conhecer a verdade final de todas as coisas. Então ele brada:
 -- Ninguém é dono da verdade!
 Com isso ele transfere a discussão das eleições para a vaidade do interlocutor, que tentará em vão provar sua modéstia.

Essa é a única utilidade da frase “Ninguém é dono da verdade.”

Olavo de Carvalho