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segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Dos grandes danos que nascem da tristeza

EXERCÍCIOS DE PERFEIÇÃO
E VIRTUDES CRISTÃS

TRATADO SEXTO
DA TRISTEZA E DA ALEGRIA

Dos grandes danos que nascem da tristeza


Esteja muito longe de ti a tristeza, diz o Sábio, porque a tristeza a muitos tem causado a morte, e não há nela proveito algum [1]. Cassiano escreve um livro inteiro sobre o espírito da tristeza, porque para curar, diz, e remediar este mal e enfermidade, não é necessário menor cuidado e diligência que para as demais enfermidades e tentações espirituais que se nos oferecem nesta vida, pelos muitos e grandes danos que traz consigo, os quais vai ali apontando, e fundando-os admiravelmente na Sagrada Escritura. Guardai-vos, diz ele, da tristeza; não a deixeis entrar no vosso coração, porque, se lhe dais entrada, e se começa a assenhorear-se de vós, logo vos tirará o gosto da oração, e fará que vos pareça dilatada a hora que se lhe dedica, e que não a cumprais inteiramente, e algumas vezes fará com que totalmente fiqueis sem oração, e que deixeis a leitura espiritual [2].

Em todos os exercícios espirituais vos dará um tédio e um fastio que não os podereis suportar. Por causa do tédio dormitou minha alma [3]. Neste verso, diz Cassiano, declara muito bem o profeta estes males que se seguem da tristeza. Não diz que se lhe adormeceu o corpo, mas a alma;  porque a tristeza e a acídia espiritual dão à alma um tão grande tédio e fastio de todos os exercícios espirituais e de todas as obras de virtude, que fica adormecida e incapaz para tudo o que é bom. E algumas vezes é tão grande este fastio que um sente para as coisas espirituais, que o chegam a enfadar e aborrecer as pessoas que tratam de virtude e de perfeição, e até às vezes procuram retraí-las e estorvá-las de seus exercícios de piedade e virtude.

Ainda tem outro efeito a tristeza, diz Cassiano, e é que torna o homem desabrido e áspero para com seus irmãos. Diz S. Gregório: A tristeza traz consigo ira e enfadamento [4]. E assim experimentamos que, quando estamos tristes, facilmente nos zangamos e enfadamos por qualquer coisa. A tristeza faz o homem impaciente nas coisas que trata, fá-lo suspeitoso e malicioso, e às vezes perturba ao homem de tal modo que parece lhe tira o juízo, e o faz sair fora de si, conforme aquilo do Eclesiástico: Onde há amargura, não há juízo [5]. E assim vemos muitas vezes que, quando reina em um a tristeza e melancolia, tem umas apreensões tão fora de razão, e umas suspeitas e temores tão sem fundamento, que aos outros que estão em seu juízo costuma causar riso, e disso fazem pratinho nas conversas, como de loucuras.

E temos visto alguns homens gravíssimos, de grandes letras e talentos, tão presos e dominados desta paixão, que era grande lástima vê-los umas vezes chorar como crianças, e outras vezes dar suspiros e gemidos tão descompassados, que mais pareciam bramidos. E depois, quando estão em seu juízo e sentem que lhes quer vir esta loucura, que assim se pode chamar, fecham-se no seu quarto, para suspirarem e chorarem a sós, sem perigo de perderem a sua autoridade e opinião para com aqueles que os vissem fazer tais coisas.

Se quereis saber de raiz os efeitos e danos que a tristeza causa no coração, diz Cassiano, o Espírito Santo no-lo diz brevemente pelo Sábio: O que faz a traça no vestido e o caruncho e a carcoma na madeira, isto mesmo faz a tristeza no coração do homem [6]. O vestido roído pela traça não vale nem pode servir para nada; o madeiro cheio de carcoma não presta para o edifício, nem se pode colocar sobre ele peso algum, porque logo se faz em pedaços. Assim também o homem cheio de melancolia, triste e carrancudo, faz-se inútil para tudo o que é bom. E não pára aqui o mal, mas o pior é que a tristeza no coração é causa e raiz de muitas tentações e de muitas quedas. A muitos matou a tristeza [7], fazendo-os cair em pecados. Para prova disto trazem aquilo que diz o santo Jó acerca do demônio que dorme na sombra [8]. Nessa sombra e escuridão, nessas névoas e trevas dessa confusão que tendes quando estais triste, aí dorme e se esconde o demônio; esse é o seu ninho e o seu covil; aí arma ele melhor as suas redes; essa é a disposição que ele está aguardando para acometer com quantas tentações quer.

Assim como as serpentes e bestas-feras estão esperando que chegue a escuridão da noite para saírem das suas covas, assim o demônio, serpente antiga, está esperando essa noite e escuridão da tristeza, e então acomete com toda a espécie de tentações [9]. Têm preparadas suas setas na aljava para na escuridão ferirem aos de coração reto [10].

Dizia S. Francisco de Assis que o demônio se alegra muito quando vê um homem de coração triste, porque então facilmente o afoga na tristeza e na desesperação, ou o leva para os prazeres mundanos. Note-se muito esta doutrina, pois é de suma importância. Ao que anda triste e melancólico, umas vezes o demônio o faz cair numa grande desconfiança e desesperação, como fez a Caim e a Judas; outras vezes, quando lhe parece que por aí não faz boa entrada, acomete-o com deleites mundanos de divertimentos e vaidades; outras vezes com prazeres carnais e sensuais, com pretexto de que com aquilo se livrará da pena e tristeza que o aflige. E daí vem que, quando um está triste, lhe costumam vir graves tentações contra a vocação, porque lhe representa o demônio que lá no mundo viveria alegre e contente: e a alguns tem tirado já da Religião esta tristeza e melancolia.

Outras vezes o demônio costuma acometer ao homem triste, trazendo-lhe pensamentos carnais e desonestos que dão gosto à sensualidade e procurando que se detenha neles com pretexto de que assim lançará de si a tristeza e se aliviará o seu coração. Isto é coisa muito para temer nos que andam tristes e melancólicos, porque neles costumam ser muito ordinárias estas tentações. E isto mesmo adverte muito bem S. Gregório. Diz ele que, como todo o homem deseja naturalmente ter algum gosto e contentamento, quando não o acha em Deus, nem nas coisas espirituais e do céu, logo o demônio, que sabe muito bem a nossa inclinação, lhe apresenta gosto e contentamento nelas, com as quais lhe parece que se mitiga e alivia a tristeza e a melancolia presentes. Ficai sabendo, diz o santo Doutor, que se não tendes contentamento e gosto nas coisas altas e de Deus, o ireis buscar nas coisas baixas e vis, porque o homem não pode viver sem algum contentamento e satisfação. [11]

Enfim, são tantos os males e danos que nascem da tristeza, que diz o Sábio: Com a tristeza vêm todos os males [12]; e noutra parte: A tristeza apressa a morte [13], e até dá a morte eterna, que é o inferno. Assim declara S. Agostinho aquilo que disse Jacó a seus filhos: Com a dor que me causais levareis minhas cãs ao inferno [14]. Diz que temeu Jacó não fizesse tanta impressão e causasse nele tanto dano a tristeza de ficar sem o seu filho Benjamim, que lhe pusesse em dúvida a salvação, e desse com ele no inferno dos condenados. E por isso diz que nos avisa o apóstolo S. Paulo que fujamos da tristeza, para que não suceda talvez que, com a tristeza demasiada, venhamos a perder nossa alma. [15]

Por serem tão grandes os danos da tristeza, por isso é que nos previne e avisa tanto a Sagrada Escritura e os Santos que fujamos e que nos acautelemos dela. Não é pela vossa consolação, nem pelo vosso gosto, pois se não houvesse mais que isso, pouco importava que estivésseis triste ou alegre. E pela mesma razão deseja e procura tanto o demônio que nos domine a tristeza, porque sabe que é a raiz e a causa de muitos males e pecados.
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[1] Tristitiam longe repelle a te, multos enim occidit tristitia, et non est utilitas in illa. Eccli. XXX. 24
[2] Cass. 1. 9 instit. renunt.
[3] Dormitavit anima mea prae taedio. Ps. CXVIII, 28.
[4] Tristis ex propinquo habet iram. Mor. 1.31, c.32.
[5] Non est sensus, ubi est amaritudo. Eccli. XXI, 15.
[6] Sicut tinea vestimento, et vermis ligno, ita tristitia viri nocet cordi. Prov. XXV, 20
[7] Multos enim occidit tristitia. Eccli. XXX, 23.
[8] Sub umbra dormit. Jó XL, 16.
[9] Posuisti tenebras, et facta est nox: in ipsa pertransibunt omnes bestiae silvae. Ps. CIII, 20.
[10] Paraverunt sagittas suas in pharetra, ut sagitten in obscuro rectos corde. Ps. X, 3.
[11] Sine delectatione anima nunquam potest esse, nam aut infimis delectatur, aut summis. Mor. 1.18.c.8.
[12] Omnis plaga tristitia cordis est. Eccl XXV, 17.
[13] A tristitia enim festinat mors. Eccli XXXVIII, 19.
[14] Deducetis canos meos cum dolore ad inferos. Gen. XLII, 38
[15] II Cor. II, 7
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